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Como viver um trauma ou presenciar uma tragédia afeta a cabeça de uma criança?

Publicado 15 Mar 2019 – 05:08 PM EDT | Atualizado 15 Mar 2019 – 05:08 PM EDT
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Na manhã da última quarta-feira (13), dois ex-alunos da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (São Paulo), invadiram a instituição armados, fizeram oito vítimas e, em seguida, tiraram a própria vida. A inesperada tragédia chocou o país e deixou todos que frequentam a escola em pânico.

O trauma ficou perceptível na fala de José Victor, aluno que, na ocasião, correu até o hospital ainda com uma machadinha presa ao ombro. Em entrevista exibida no “Encontro” (Rede Globo) e concedida no hospital Santa Maria, onde ele se recupera do ferimento, o jovem de 18 anos manifesta, desde agora, muito medo em retornar ao local do ataque. Questionado sobre como será voltar para lá, ele prontamente respondeu: “Não vai dar para entrar naquela escola. Para mim, não vai dar.”

O medo manifestado pelo jovem é algo comum após uma experiência traumática – e não apenas para os alunos que foram feridos durante a tragédia em Suzano. Segundo especialistas, eventos assim trazem consequências relevantes para o psicológico de crianças e adolescentes e é preciso executar um trabalho muito cuidadoso para reconstruir o emocional delas e restabelecê-las na escola.

Estresse pós-traumático, depressão e mais

Conforme explica a psicóloga Livia Marques, o choque por algo tão grave acontecer em um local de acolhimento e de oportunidades como é a escola faz uma verdadeira bagunça na cabeça de um jovem. Segundo ela, é natural que o psicológico tanto das que foram feridas quanto das que viveram o momento de pânico fique bastante abalado e que elas acabem sofrendo com alguns distúrbios.

Para ela, o estresse pós-traumático é uma certeza nesta situação, e ele pode se manifestar de diversas formas. “Ele acontece quando a gente não sabe dar uma resposta em tempo hábil durante e depois desse estresse, desse trauma. Ele traz comportamentos, pensamentos disfuncionais e sintomas, como o isolamento, não querer passar perto do local, modificações no sono e na alimentação”, exemplifica a psicóloga.

Ela afirma também que, para quem passou por um trauma como esse, basta um som que lembre a situação para que o estresse pós-traumático se manifeste de maneira física. “A gente pode falar de crianças que têm tremores, por exemplo, ao ouvir barulhos que sejam parecidos com barulhos de tiro”, explica Livia.

Esse distúrbio, porém, não é o único possível entre os jovens que se viram em um momento tão terrível. Além dele, a psicóloga também cita a possibilidade de eles desenvolverem transtornos de pânico e depressão.

Atenção, empatia e ajuda profissional

Para que possam superar esse trauma e qualquer distúrbio psicológico que possa surgir em decorrência dele, é preciso que pais, a instituição e até outros profissionais façam um trabalho integrado. Para a psicóloga, tudo começa com o acolhimento da família a esses adolescentes, que deve ser bastante concreto para que eles não se sintam sozinhos na difícil situação.

“Pais assertivos são aqueles que ouvem, observam de forma empática e ativa, procuram atender e conversar com seus filhos sobre a situação”, explica Livia, enfatizando que isso, porém, não significa insistir nas soluções que julgam necessárias nem sufocar o jovem.

“A gente não sabe o que aquela pessoa precisa porque a gente julga o que é necessário. Na verdade, a gente tem de ouvir empaticamente o que o outro necessita. É uma conversa, uma distração. É oferecer carinho, amor, é se mostrar disponível. É dizer: ‘Estou aqui com você para o que for necessário, conte comigo’”, afirma ela.

Segundo a psicóloga, também é necessário, além de dar toda a atenção e o carinho possíveis, ficar de olho no desenvolvimento dos sintomas apresentados. “É preciso entender quando a criança está isolada demais e tentar intervir e procurar ajuda caso perceba que ela está ficando cada vez mais deprimida”, aconselha Livia.

Essa ajuda extra, segundo ela, seria a da terapia; conforme explica a psicóloga, no consultório o trauma é trabalhado e os sentimentos, reconstruídos. “A gente trabalha através de técnicas, de mindfulness, que é trabalhar o cérebro e a respiração para podermos nos reconectar conosco e pensar de forma mais assertiva. É preciso treinar também as habilidades sociais para que essa pessoa volte a ter uma convivência social”, diz.

O papel da escola

Além dos pais e de profissionais que oferecem auxílio psicológico, é importante também que a escola faça um trabalho concreto de diálogo e acolhimento das crianças. É o que afirma a psicopedagoga Luciana Brites, que destaca uma abertura para que os alunos falem sobre o que aconteceu como um dos pontos mais essenciais dessa estratégia.

“É muito importante que a escola faça momentos para as crianças comentarem o que aconteceu, o que elas sentiram, ter algum momento do dia para elas falarem como foi isso, elaborarem. É importante porque, quanto mais a gente fala, mais a gente elabora o trauma. Não dá para chegar no outro dia e começar a aula sem puxar o assunto”, explica, ressaltando que o mais interessante seria esse momento ser mediado por um psicólogo.

Ela afirma também que esse tipo de reunião não deve acontecer apenas uma vez. “É muito importante que isso seja comentado por diversos dias, fazendo realmente um grupo de discussão, de reflexão, das lições que as pessoas podem ter sobre isso, o quanto isso foi difícil, expor o que estão sentido”, comenta ela, afirmando que esse tipo de medida auxilia na hora de racionalizar o que se sente.

Luciana também aconselha a elaboração de uma assistência mais individualizada, escolhendo, por exemplo, um professor a quem os alunos possam recorrer para desabafar e levar questões que tragam medo. Além disso, ela considera importante que os pais também participem dessas discussões. “É importante os pais serem levados à escola. De repente, poderia ter sido o filho de uma dessas outras pessoas, tanto morrendo quanto atirando. É uma reflexão que se faz necessária”, explica.

Para ela, inclusive, essas medidas não devem ser tomadas apenas pela escola que foi palco da tragédia; conforme explica, canais de diálogo abertos tanto entre professores e alunos quanto entre a instituição e a família para discutir questões como essa são essenciais.

Enquanto a troca de escolas pode ser algo necessário em casos como o de José, que se sentiria mal retornando ao local, Luciana afirma que isso não é exatamente necessário para todas as crianças. Segundo a psicopedagoga, como uma tragédia como essa poderia ter acontecido em outras escolas, transferir a criança pode dar a ela uma falsa ideia de realidade.

“Isso é uma coisa importante de se falar para as crianças: tudo está fora do nosso controle. A única coisa que está sob meu controle é minha atitude, minha emoção, minhas possibilidades. Mudar de escola não vai dar a garantia de que isso não vai acontecer”, esclarece.

Tragédia em Suzano

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